Nota
- àliteração.

- 18 de fev. de 2018
- 6 min de leitura
Atualizado: 21 de fev. de 2018

O céu alaranjado anunciava a carruagem de Hélio aposentando o dia para instaurar a noite. E sob o rarefeito pôr-do-sol que se escondia nas nuvens, eu balançava meu molho de chaves procurando com o tato a fechadura do portão. Achei. Empurrei-a para dentro e destranquei-o. Passei, virei e fechei. Estava em casa finalmente. Subi a rampa da entrada com passos largos, alternando entre pisar na grama úmida e no concreto que servia de caminho para os carros. O chão nivelou-se eventualmente e alcancei, enfim, a porta de entrada. Que dia cansativo! Minhas costas arqueavam para frente, implorando o conforto da minha cama. Mas não queria ir dormir. Não. Estava cedo para isso. Queria aproveitar os últimos minutos de dia que esgueiravam-se na janela. Queria tocar meu piano. Matutára suas pautas o dia inteiro, descrevendo-as em batuques sobre tudo que minhas mãos pousavam. Queria agora traduzir esses batuques em notas. Entrei na casa e dirigi-me a sala à esquerda. O cômodo era um arranjo de dois sofás, algumas cadeiras, vários quadros e um lustre e uma mesa no centro. Guiei minha atenção ao instrumento sentado logo em sua entrada. Acendi a luz, piscando enquanto minhas pupilas se ajustavam ao brilho intenso. Lancei minha mala com descaso na poltrona virada para os móveis que preenchiam a sala. Sempre acabava por ignorar o restante do cômodo. Talvez porque cheirasse a velhice e eu não gostasse de coisas velhas. Mas tenho quase certeza que era porque o Wi-fi não chegava la. Puxei o banco que dormia encostado na parede e sentei em seu estofamento inútil que não estofava nada. À minha frente estava Ele. Meu amigo de madeira escura, envernizada. Sobre sua caixa, enfileiradas, memórias capturadas em porta-retratos diversos. Uma linha do tempo que iniciava-se na geração de meus avós e terminava na minha. Talvez um dia eu contribuisse com mais uma moldura na exposição de sorrisos atemporais. Mas por enquanto pouco me interessava isso. A tampa que escondia o teclado possuia uma pequena fechadura. Nem sabia se sua chave estava na casa ainda. Não lembrava de ter trancado ele uma vez sequer. Alias, não lembrava nem da fechadura existir. Para que trancar um piano? Esquisito. "Mas, enfim" pensei, enquanto revelava lentamente o pano vermelho que cobria as teclas sutilmente amareladas. "Casa Manon" estava escrito em sua superficie. Retirei-o e larguei perto das fotos. Suspirei. Amava essa sensação. Com tantas coisas para pensar no dia-a-dia, sentar e relaxar os ombros trazia tanto comforto quanto um cobertor com chocolate quente num dia de inverno. Na peça articulada que servia de suporte para as partituras não havia nada. Fazia tempo que não punha uma folha ali. Malditos PDFs, substituiram minha desgastada apostila de obras musicais. Talvez não gostasse do novo tanto quanto não gostava do velho. Passei a folhear mentalmente minha coleção de músicas inacabadas que vinha tocando nos últimos dias. Escolhi uma. Não a treinava fazia dois dias. Com sorte não havia esquecido tudo. Pressionei um ré um pouco hesitante. Nota errada. Decidi esperar meu cérebro reiniciar e calcular a situação. Não conseguia me concentrar com outros assuntos ocupando espaço. Suspirei pela segunda . "Vamos tentar de novo" pensei comigo mesmo. Posicionei-me sobre os acordes, as juntas dos dedos corrigiram minha postura, formando uma garra para que não acertasse as teclas adjacentes. E comecei. Comecei minha prosa musical no pianíssimo, acordes suaves murmuravam suas notas em vozes delicadas como que pedindo lincença pro silencio antes de invadi-lo. A medida que progredia, fui escalando a um mezzo-piano, aumentando a pressão nas pontas dos dedos com cuidado. As notas, de timbre preciso, ajeitavam-se em harmonia perfeitamente, aconchegando meu espírito tenso. Sentia um véu místico de tranquilidade envolver-me. Esqueci onde estava naquele instante. Mas tambem não tentei lembrar. Naquele momento não havia mais nada além de nós. E assim, deixei-me levar pelos sons. Escrevia minha mente no ar. Em letras trêmulas de ondas longitudinais. Lia minha poesia abstrata com ouvidos famintos. E sentia minhas preocupações dissiparem-se. Como se gradualmente meus pensamentos fossem embora, despejados sobre as teclas rígidas e suaves em que meus dedos deslizavam e paravam em uma valsa de amor. Valsa, essa, que eu apenas olhava. Observava. Subitamente não era mais eu dançando. Era um baile entre meu piano e meu corpo. Não me sentia tocando as notas frias. Apenas sentia elas esquentarem minha mente. Disparando milhares de sinapses a cada lá, a cada dó, a cada lado de mim que sentia suas nuâncias brancas e pretas reverberarem por ossos, carnes e órgãos. Nada escapava. Nada escapava do canto da sereia Sandoli que me puxava próximo a seus labios na calmaria de uma ideia perdida para o momento, e me repelia com a força dos sete mares ao descer uma oitava. Duas oitavas. Sentia-me em uma montanha russa. Meu pé firmemente apertava o pedal como se após uma longa descida nos trilhos da canção, encontrasse calmaria novamente e pedisse com toda força que ficasse. Mas era interrompido com uma nova cena. Um novo movimento. Um novo acorde. E subia lentamente seus dedos, esperando em um instante tão curto, quase imperceptível, a nova descida. Despencando sobre a alavanca rústica que arquitetava os bastidores da valsa. O violonista no fundo que complementava perfeitamente a dança dos dois amantes os quais ocupavam o palco principal da atração. Atracão, esta, que os apaixonados nunca haviam sentido antes. Uma paixão entre minhas mãos e meu piano. Sempre foram inanimados. Inertes. Não tocavam uma nota nem reproduziam um gesto sem meu comando. Mas naquela tarde de outono que começara sonolenta e agora acordava duas almas em uníssono e brilhante espetáculo, naquele lapso momentâneo de razão, talvez tivessem mais vida que qualquer ser vivo jamais teve. E em meio aos seus entrelaços essas duas vidas se tocavam. Se sentiam. E se perguntavam porque nunca haviam experenciado isso antes. Ja haviam conversado. Conheciam-se com a initimidade de dois amigos de infância. E realmente eram. Ainda assim não era a mesma coisa. Havia algo diferente dessa vez. Completavam um ao outro, lentamente preenchendo as lacunas de suas existências a cada verbo conjugado em seu tempo correto. Um verbo que eles falavam. Mas eu pensava. E espantei-me quase interrompendo o espetáculo que se desenrolava em frente aos meus olhos. Eu, que até entao tentava compreender como participava dessa conversa se não sentia-me nela, mas sentia ela, entendi o que ocorria. Lia em minha mente o parágrafo bidimensional que se estendia de uma ponta de minha consciência à outra. E pensava. Cada letra lida se diluia em meu cérebro e escorria pelos meus nervos, alcançando minhas extremidades e transferindo-se à minha boca extracorpórea que as pronunciava com acentos sustenidos. Havia entendido o milagre contido naquela sala que transcendia em vibrações ao resto da casa. Eu não era um simples espectador. Eu era o maestro. Vi pairando sobre minha partitura mental a varinha de um mago disfarçada de batuta. Esta não gritava "Avadaquedavra" ou "Leviosa" e muito menos soltava faíscas de sua ponta. Seus feitiços lançavam-se ao mundo pelas cordas alinhadas dentro do instrumento ancião à minha frente. E nesse embalo mágico que maravilhava meus sentidos deixei minha mente vagar livre. Livre de todas as preocupações que me atormentavam. Amor. Escola. Familia. Futuro. Passado. Mas não o presente. Não, o presente fluia livre e eu me deliciava com sua leveza. E entao subitamente, parei. Parei. Sim, parei. Calma, parei porque? Encarei minhas mãos estagnadas no acorde esperando meu próximo comando em uma hesitação tácita. Minha partitura havia sumido. Evaporou nos confins de minha consciência e em seu lugar sobrara um vazio. Um abismo obscuro. E eu me encontrava na ponta de seu rochedo, abismado com o abismo. Não havia mais notas. Aquele era o ponto máximo em que jamais havia chegado. Não sabia o que vinha depois. No fundo, o pedal segurava minhas últimas palavras na frase sem ponto final que eu havia abandonado. E lentamente os últimos vestígios de minha epifania decaiam na madeira polida do instrumento, apagando-se e substituindo-se por um silêncio intrometido. Soltei minhas mãos do piano. A valsa murchou e os amantes morreram. Sobrou apenas eu e um pedaço de madeira velha calado. Respirei fundo. Soltei o ar vagarosamente. Ouvi passos aproximando-se na distância. Como se minha música ouvesse acordado um gigante escondido no abismo da quietude. Passos. Um passo de cada vez. Surgiu, então, de tras da parede amarelada da sala uma cabeça familiar, averiguando-me com o olhar encantado do espetáculo encerrado a poucos segundos. Seu corpo escondia-se atrás, com medo de fazer algum movimento brusco como que atrapalhasse meu ato artístico. "Ta ficando bom, em filhão. Daqui a pouco ta tirando de letra!" Disse com um sorriso reconfortante no rosto. E recuou para o escuro novamente, dirigindo-se à cozinha, seus chinelos arrastando no piso de madeira a cada passo, abafando-se ao passar pelo tapete. Olhei para o piano. Meu piano. Minha Máquina do Mundo. Agora descansando exausto, esperando ser acordado novamente.
- Pax




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